sábado, julho 25, 2009

Edifício Rouxinol

Levanto da cama sem pular, sem me assustar com o volume do despertador. Calmamente me arrasto dentro da calça do pijama amassada pela noite bem dormida. ‘Estou numa fase, eu diria, nem aí pra nada’, pensei enquanto tateava o caminho do banheiro sem abrir os olhos. Ponho a pasta na escova de dentes, ligo o chuveiro, sento na privada. ‘Eu não deveria gastar água tomando banho, ou escovando os dentes, ou mesmo cagando’, por um instante me arrependo de ter levantado. A cama me atrai de volta. Resisto.
O barulho da Avenida mais movimentada e popular da cidade (e do país!) já é intenso. Coloco a roupa de sempre, camiseta, calça social e tênis ou camisa, calça jeans e, ‘bom, vamos ver’, indeciso calço o tênis. Abro a janela do quarto. Garoa cinza e névoa. Carros. Guardas-chuvas. Ônibus. ‘A janela do meu quarto dá para uma esquina 24 horas’, pondero. ‘Segunda geralmente não é dia de feira?’, analiso.
‘Nasci nesta capital num hospital militar. Cresci numa vila. Estudei em colégio de freiras. Fugi do catecismo’, me orgulho. De volta da escola, passava por baixo dos caminhões estacionados em cima da calçada, claro, eles eram tão altos que era impossível não querer passar por baixo. Meus irmãos me seguiam. Levava bronca atrás de bronca da minha avó portuguesa. Mal acabava de almoçar saía correndo pra rua. Jogar bola, andar de bicicleta, brigar com o vizinho da casa do outro lado da rua. Uma imensidão a atravessar, muito maior que o céu que a minha pipa amarela voava.
‘Vem vem Vincent, seu café da manhã. Isso menino!’, satisfeito ele me abraça. Tomo um café da manhã do qual nunca abri mão graças a minha mãe asmática. Ela sentava e degustava vivaz aquele banquete. ‘Com café com leite com pão com manteiga’, tudo isso. Repeti todos esses anos. Ela, urbana, gordinha e baixinha. Dos cabelos de tintura, às vezes se envergonha com aquela faixa grisalha ao meio, no meio do mês aguardando o salário. Mora agora no interior com meu pai caipira com seus discos de vinil caipiras sua horta de hortaliça e hortelã. O barrigão de todos os tempos das cervejas de nunca mais. Meus irmãos casaram, meus avós morreram já faz uma porção de anos. Décadas.
Moro no vigésimo primeiro andar. Abro a porta recolho o jornal e como ontem e anteontem aumento o pedestal monumento, a obra do século que já alcança o interruptor da luz da entrada. Desço de escada até o quinto e tomo o elevador até o térreo. Não me dou com esses andaimes. ‘Pára no segundo, pára no segundo’, rezo, faço figa, fecho um olho, fecho o outro, lembro da mandinga, uma fisgada no intestino. Abro os olhos, térreo. ‘É. Nunca mais nos veremos..’ sinto um nó na garganta da gravata que jamais usei ou usarei.
É sempre geometricamente certo que com cinco passos já dobro a esquina e em direção ao metrô desvio de poças, esbarro em pessoas e trago profundamente sem nem mesmo acender o meu cigarro que eu não fumo. A família de olhos do Baudelaire e bocas do estômago abertas marcam a jornada junto aos vidros dos carros embaçados por dentro por causa do ar-condicionado, gotejados por fora por causa do calor úmido da estação marcante do horário do dia. Logo depois do meio dia virão as outras três, fiéis de braços dados com os transeuntes se acotovelando. Verão. Outono. Inverno.
“Ah então o que você está me dizendo é que colocaram cotidiano pós-moderno!? Editaram assim? Já fecharam? Entendi, olha eu tô entrando no metrô e meu celular não pega lá dentro, será que você pode me ligar daqui dez minutos? Ãhn? Pega? Ou então logo estarei aí e a gente discute esse problema cotidiano pós-moderno tudo bem? Não, não o meu. É antigo. É. Daqueles que tiram foto sabe? Toca mp3, essas coisas”.
Assim que comecei a descer as escadas do metrô começou a chover mais e cada vez mais as pessoas se acotovelavam, se calcanhavam, se esbravejavam. Adjetivos para 17 milhões de guarda-chuvas não faltam. Nem sinônimos para exagero. A mulher na minha frente de salto alto sacode o seu xadrezinho verde e vermelho em cima da outra que está na sua frente, que vira para trás encarando ferozmente e reclamando consigo mesma. Eu não me atreveria com tamanha carranca.
Na catraca, a loira dos seus trinta e poucos anos, exibe a última moda: bigode à Chaplin. Última em Paris. O sujeito que acompanha a dona de bigode traja aquela famosa e hoje excêntrica roupa de pingüim e, pendendo em seu braço uma bengala, quer dizer, um guarda-chuva compõem o quadro mudo.
Um pouco antes da catraca fui subitamente abordado. “Pra onde fica a Augusta hein?” Deve ter se enganado de encontro. Dizia Angélica no papel sujo e amassado das mãos do metrô. “A Angélica você quer dizer?”, corrijo. “É, isso mesmo!, estou louco!?”. “Por aquela saída”, aponto. “Mas é perto? Preciso ir no Oba Oba. Você conhece?” “Não”, tenho que ir, “mas é pra lá, sai à esquerda, vira à esquerda na rua, atravessa a Consolação e tá na Angélica”. “E a Augusta então pra onde é?”. “Pro outro lado”. “Ah e tem uma lan house? Preciso comprar ingresso pro show. Quero ir no show hoje. Tem lan house? Na Augusta? O Oba Oba é na Angélica? Dá na altura do 2750? Acho melhor ir numa lan house. Tem na Augusta? E a Angélica é muito longe? Tudo bem, melhor ir na lan house, vai que o Oba Oba não é na Angélica, e sim na Augusta...”
Dormi a viagem toda mesmo segurando como podia nos ferros do vagão enlatado com cheiro de café da manhã fio dental de menta jornal molhado secando. Quando acordei já estava na frente do meu computador em minha bancada solitária, a chuva ainda pingando de vez em quando da ponta do meu cabelo na lente dos meus óculos. A fumaça do copo de café ajudava a embaçar a visão e me levava para outros mundos inimagináveis enquanto eu procurava cego numa sala de cinema com o filme pela metade, um ótimo motivo para publicar neste site. Talvez alguém importante tenha morrido. Não. Ninguém importante morreu hoje. ‘Se eu não achar algo realmente relevante pra essa merda de site, eu juro que peço demissão’, pensava segurando o copo de café entre os dentes.
Fui até a área comum, tomei mais um café, conversei com a Molly, amenidades, xingamos o trabalho, a vida, a cidade, as condutas, os pormenores, as dificuldades, as vontades, as pendências.
Voltei para minha mesa e comecei a pensar no tempo. ‘Porque este exato segundo, não tenho. Converso com o relógio. Passou. Óbvio, pra um lugar comum. Só posso imaginar o segundo anterior e o próximo. Imaginando um relógio de ponteiros não vejo o segundo atual. O ponteiro passa pelo espaço entre dois marcos de segundos. Não tenho um relógio de ponteiros aqui comigo. Não tenho um relógio de ponteiros em lugar nenhum, a não ser um pendurado na cozinha da minha casa, que está parado em alguma hora, que não sei qual, porque ele só tem a marca do doze, também não sei porque. Abro o relógio do computador e, segundo o senhor Gates, Você não tem o nível de privilégio necessário para alterar a hora do sistema. Estou aqui no segundo anterior que me joga ao próximo e assim por diante, como um rato morto pendurado pelo rabo no pêndulo de uma igreja em ruínas onde, na sacristia, um mendigo vestido de padre joga água de esgoto num coroinha vestido de cachorro. Criatividade despida no ponto de uma puta numa avenida. De trás pra frente, frase a frase, aguardo o próximo segundo enrolando algumas palavras, preparando meu...’, olá Marlene bom dia em um minuto fecho o editorial e te envio.
‘...ah, solitários leitores, mas não vão pensando que a leitura é menos árdua que a escrita’, comecei a rascunhar o editorial que seria totalmente alterado e outra coisa completamente diferente seria publicada pela Marlene. ‘Marvada Marlene’, apelidei.
‘...o que eu gostaria de lhes dizer hoje, nesta quinta-feira chuvosa e quente de fevereiro é que vocês são todos uns otários de acompanharem este semanário estúpido assinado e editado por uma pessoa que não os respeita...’.
“Foi tudo o que escrevi essa semana”, bati na porta, entrei joguei os rascunhos na mesa dela, e disse. Passar bem e saí para o fim do último expediente.
Todo o caminho de volta para casa foi igual. Mas algo diferente estava acontecendo. Não reparei em ninguém, não me ative a fato curioso nenhum. Não estava ali. Entrei em casa joguei as coisas no sofá, uma música em alto e bom som o suficiente me absorveu.
Abri uma garrafa de vinho. Tomei uma, duas taças. Na terceira me indaguei ‘quanto as veias sobressaltam ao longo dos braços num dia quente e intenso? Quanto a pele das mãos suporta esticar depois de tomar uma garrafa de vinho? Quantos quilômetros andados para sentir a primeira bolha na sola do pé, que depois recobrirá quantas forem as camadas de pele necessárias para travestir-me de algo coerente, reconhecível, familiar, lógico? Eu, que não vejo a hora de explodir, quero saber: quanto tempo uma lágrima agüenta sem escorrer?’
Terminada a garrafa, deitei. A melhor sensação do mundo. ‘Entre o sono e a vigília, eu queria um troço ejetável que me sugasse inteiro, e aí eu esqueceria tudo. Imprimiria tudo isso que saísse de mim e grudaria no telefone público: loira peituda topa tudo duas vezes’.
Um tapa no despertador e ele nunca mais vai tocar nesse timbre tão horrível. Estragando a música. Eu devia estar feliz com a sexta-feira sem chuva, ameaçando um sol. Estava feliz, mas com o vinho. ‘Não estava nem aí pra nada’, lembrei-me. Vesti o de sempre, pasta de dente, chuveiro e vaso, normalmente.
Sentei a mesa para o café cheiroso de todos os dias. Então por um instante, por um breve instante, fiquei mirando o monumento impresso da minha sala. A representação máxima da minha estupidez impressa e registrada na máxima estupidez do século. Levantei com a xícara de café na mão e me aproximei da obra inacabada do homem sem foco. Melhor: o homem fora de foco. Puxei um jornal do meio da pilha, quase um dos últimos.
Voltei a mesa do café, abri na seção Cartas dos Leitores.

Tenho uma intenção. Não importa. Importa a tentativa de me esconder. Me esconder atrás de um poste. Como sou gordo, não consigo. Mas penso que já que o prefeito decidiu contemplar os skatistas com a reforma na calçada da Paulista, poderia agraciar os gordinhos alargando os postes. Eu moro no vigésimo quinto andar do Edifício Rouxinol e vejo, todas as noites, o quanto eles estão contentes com o piso liso da calçada nova.
Ilustríssimo Senhor Prefeito. Ou seria Excelentíssimo? Ou como é mesmo que se abreviam esses pronomes de tratamento? Mas isso também não vem ao caso, porque não me ajuda a me esconder.
Quero me esconder atrás daquele poste da esquina da Haddok Lobo com a Paulista, pra quando aquele meu vizinho passear com o Vincent, todo sábado, e ele resolver fazer xixi, eu vou poder dar aquele escândalo, afinal o cachorro terá mijado na minha perna, porque estarei feliz escondido atrás do poste alargado pelo Excelentíssimo Sr. Prefeito, e então trocaremos telefones. Trocaremos também algumas ofensas, mas isso é pro relacionamento já começar picante e um pouco agressivo. Mas sou gordo.
Na verdade eu sou ator e estou procurando um jeito de me esconder atrás do palco. Não do palco, mas da cena. Só que eu tenho que estar em cena. Então resolvi escrever esta carta para vocês, porque sei que alguma boa alma irá me ajudar a resolver o meu problema. Se eu fosse um escritor, poderia tentar me esconder atrás das palavras. Pareceu, primeiramente, mais fácil do que me esconder atrás de uma cena. Mas cheguei até esta linha e tudo o que consegui foi uma frustrada imaginação de como me esconder atrás de um poste na Paulista.
É claro que se eu disser que tenho no palco apenas a mim mesmo e um objeto qualquer - claro que mais estreito do que eu porque assim conseguiria melhor o efeito de esconderijo em cena, mostrando a todos que, ora vejam só, estou escondido e pretendo flertar com o meu vizinho - eu conseguiria me esconder. Mas eis que me ocorre a idéia de me esconder usando a iluminação da cena. Deixo tudo escuro e estarei escondido. Não, mas isso não terá o efeito de esconderijo pois o público mal saberá que tem alguém ali. No máximo vão achar que a peça terminou e vão bater palmas. Poderia deixar as luzes coloridas preencherem o palco e projetar em mim uma sombra, mas vão achar que é uma porta, um corredor ou outra coisa qualquer sem importância.
Uma palavra para eu me esconder. É tudo o que peço para acompanhar este vinho vagabundo! E se eu fosse um pintor? Abro a janela do meu quarto onde estou no momento escrevendo esta carta, esta última carta: "Prefeito, ajude-me por favor!"


O jornal era de segunda-feira. Levantei da mesa, larguei tudo como estava. Deixei a mochila no sofá, não peguei o casaco e não coloquei os óculos. Abri a porta, pisei no jornal, apertei o botão do elevador. Uma breve ave-maria. Apertei o vigésimo quinto. Bati na única porta da cobertura. Entrei abracei-o e corri para a janela.


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Um comentário:

Rê DVG disse...

Gostei muito!!