sábado, julho 25, 2009

Edifício Rouxinol

Levanto da cama sem pular, sem me assustar com o volume do despertador. Calmamente me arrasto dentro da calça do pijama amassada pela noite bem dormida. ‘Estou numa fase, eu diria, nem aí pra nada’, pensei enquanto tateava o caminho do banheiro sem abrir os olhos. Ponho a pasta na escova de dentes, ligo o chuveiro, sento na privada. ‘Eu não deveria gastar água tomando banho, ou escovando os dentes, ou mesmo cagando’, por um instante me arrependo de ter levantado. A cama me atrai de volta. Resisto.
O barulho da Avenida mais movimentada e popular da cidade (e do país!) já é intenso. Coloco a roupa de sempre, camiseta, calça social e tênis ou camisa, calça jeans e, ‘bom, vamos ver’, indeciso calço o tênis. Abro a janela do quarto. Garoa cinza e névoa. Carros. Guardas-chuvas. Ônibus. ‘A janela do meu quarto dá para uma esquina 24 horas’, pondero. ‘Segunda geralmente não é dia de feira?’, analiso.
‘Nasci nesta capital num hospital militar. Cresci numa vila. Estudei em colégio de freiras. Fugi do catecismo’, me orgulho. De volta da escola, passava por baixo dos caminhões estacionados em cima da calçada, claro, eles eram tão altos que era impossível não querer passar por baixo. Meus irmãos me seguiam. Levava bronca atrás de bronca da minha avó portuguesa. Mal acabava de almoçar saía correndo pra rua. Jogar bola, andar de bicicleta, brigar com o vizinho da casa do outro lado da rua. Uma imensidão a atravessar, muito maior que o céu que a minha pipa amarela voava.
‘Vem vem Vincent, seu café da manhã. Isso menino!’, satisfeito ele me abraça. Tomo um café da manhã do qual nunca abri mão graças a minha mãe asmática. Ela sentava e degustava vivaz aquele banquete. ‘Com café com leite com pão com manteiga’, tudo isso. Repeti todos esses anos. Ela, urbana, gordinha e baixinha. Dos cabelos de tintura, às vezes se envergonha com aquela faixa grisalha ao meio, no meio do mês aguardando o salário. Mora agora no interior com meu pai caipira com seus discos de vinil caipiras sua horta de hortaliça e hortelã. O barrigão de todos os tempos das cervejas de nunca mais. Meus irmãos casaram, meus avós morreram já faz uma porção de anos. Décadas.
Moro no vigésimo primeiro andar. Abro a porta recolho o jornal e como ontem e anteontem aumento o pedestal monumento, a obra do século que já alcança o interruptor da luz da entrada. Desço de escada até o quinto e tomo o elevador até o térreo. Não me dou com esses andaimes. ‘Pára no segundo, pára no segundo’, rezo, faço figa, fecho um olho, fecho o outro, lembro da mandinga, uma fisgada no intestino. Abro os olhos, térreo. ‘É. Nunca mais nos veremos..’ sinto um nó na garganta da gravata que jamais usei ou usarei.
É sempre geometricamente certo que com cinco passos já dobro a esquina e em direção ao metrô desvio de poças, esbarro em pessoas e trago profundamente sem nem mesmo acender o meu cigarro que eu não fumo. A família de olhos do Baudelaire e bocas do estômago abertas marcam a jornada junto aos vidros dos carros embaçados por dentro por causa do ar-condicionado, gotejados por fora por causa do calor úmido da estação marcante do horário do dia. Logo depois do meio dia virão as outras três, fiéis de braços dados com os transeuntes se acotovelando. Verão. Outono. Inverno.
“Ah então o que você está me dizendo é que colocaram cotidiano pós-moderno!? Editaram assim? Já fecharam? Entendi, olha eu tô entrando no metrô e meu celular não pega lá dentro, será que você pode me ligar daqui dez minutos? Ãhn? Pega? Ou então logo estarei aí e a gente discute esse problema cotidiano pós-moderno tudo bem? Não, não o meu. É antigo. É. Daqueles que tiram foto sabe? Toca mp3, essas coisas”.
Assim que comecei a descer as escadas do metrô começou a chover mais e cada vez mais as pessoas se acotovelavam, se calcanhavam, se esbravejavam. Adjetivos para 17 milhões de guarda-chuvas não faltam. Nem sinônimos para exagero. A mulher na minha frente de salto alto sacode o seu xadrezinho verde e vermelho em cima da outra que está na sua frente, que vira para trás encarando ferozmente e reclamando consigo mesma. Eu não me atreveria com tamanha carranca.
Na catraca, a loira dos seus trinta e poucos anos, exibe a última moda: bigode à Chaplin. Última em Paris. O sujeito que acompanha a dona de bigode traja aquela famosa e hoje excêntrica roupa de pingüim e, pendendo em seu braço uma bengala, quer dizer, um guarda-chuva compõem o quadro mudo.
Um pouco antes da catraca fui subitamente abordado. “Pra onde fica a Augusta hein?” Deve ter se enganado de encontro. Dizia Angélica no papel sujo e amassado das mãos do metrô. “A Angélica você quer dizer?”, corrijo. “É, isso mesmo!, estou louco!?”. “Por aquela saída”, aponto. “Mas é perto? Preciso ir no Oba Oba. Você conhece?” “Não”, tenho que ir, “mas é pra lá, sai à esquerda, vira à esquerda na rua, atravessa a Consolação e tá na Angélica”. “E a Augusta então pra onde é?”. “Pro outro lado”. “Ah e tem uma lan house? Preciso comprar ingresso pro show. Quero ir no show hoje. Tem lan house? Na Augusta? O Oba Oba é na Angélica? Dá na altura do 2750? Acho melhor ir numa lan house. Tem na Augusta? E a Angélica é muito longe? Tudo bem, melhor ir na lan house, vai que o Oba Oba não é na Angélica, e sim na Augusta...”
Dormi a viagem toda mesmo segurando como podia nos ferros do vagão enlatado com cheiro de café da manhã fio dental de menta jornal molhado secando. Quando acordei já estava na frente do meu computador em minha bancada solitária, a chuva ainda pingando de vez em quando da ponta do meu cabelo na lente dos meus óculos. A fumaça do copo de café ajudava a embaçar a visão e me levava para outros mundos inimagináveis enquanto eu procurava cego numa sala de cinema com o filme pela metade, um ótimo motivo para publicar neste site. Talvez alguém importante tenha morrido. Não. Ninguém importante morreu hoje. ‘Se eu não achar algo realmente relevante pra essa merda de site, eu juro que peço demissão’, pensava segurando o copo de café entre os dentes.
Fui até a área comum, tomei mais um café, conversei com a Molly, amenidades, xingamos o trabalho, a vida, a cidade, as condutas, os pormenores, as dificuldades, as vontades, as pendências.
Voltei para minha mesa e comecei a pensar no tempo. ‘Porque este exato segundo, não tenho. Converso com o relógio. Passou. Óbvio, pra um lugar comum. Só posso imaginar o segundo anterior e o próximo. Imaginando um relógio de ponteiros não vejo o segundo atual. O ponteiro passa pelo espaço entre dois marcos de segundos. Não tenho um relógio de ponteiros aqui comigo. Não tenho um relógio de ponteiros em lugar nenhum, a não ser um pendurado na cozinha da minha casa, que está parado em alguma hora, que não sei qual, porque ele só tem a marca do doze, também não sei porque. Abro o relógio do computador e, segundo o senhor Gates, Você não tem o nível de privilégio necessário para alterar a hora do sistema. Estou aqui no segundo anterior que me joga ao próximo e assim por diante, como um rato morto pendurado pelo rabo no pêndulo de uma igreja em ruínas onde, na sacristia, um mendigo vestido de padre joga água de esgoto num coroinha vestido de cachorro. Criatividade despida no ponto de uma puta numa avenida. De trás pra frente, frase a frase, aguardo o próximo segundo enrolando algumas palavras, preparando meu...’, olá Marlene bom dia em um minuto fecho o editorial e te envio.
‘...ah, solitários leitores, mas não vão pensando que a leitura é menos árdua que a escrita’, comecei a rascunhar o editorial que seria totalmente alterado e outra coisa completamente diferente seria publicada pela Marlene. ‘Marvada Marlene’, apelidei.
‘...o que eu gostaria de lhes dizer hoje, nesta quinta-feira chuvosa e quente de fevereiro é que vocês são todos uns otários de acompanharem este semanário estúpido assinado e editado por uma pessoa que não os respeita...’.
“Foi tudo o que escrevi essa semana”, bati na porta, entrei joguei os rascunhos na mesa dela, e disse. Passar bem e saí para o fim do último expediente.
Todo o caminho de volta para casa foi igual. Mas algo diferente estava acontecendo. Não reparei em ninguém, não me ative a fato curioso nenhum. Não estava ali. Entrei em casa joguei as coisas no sofá, uma música em alto e bom som o suficiente me absorveu.
Abri uma garrafa de vinho. Tomei uma, duas taças. Na terceira me indaguei ‘quanto as veias sobressaltam ao longo dos braços num dia quente e intenso? Quanto a pele das mãos suporta esticar depois de tomar uma garrafa de vinho? Quantos quilômetros andados para sentir a primeira bolha na sola do pé, que depois recobrirá quantas forem as camadas de pele necessárias para travestir-me de algo coerente, reconhecível, familiar, lógico? Eu, que não vejo a hora de explodir, quero saber: quanto tempo uma lágrima agüenta sem escorrer?’
Terminada a garrafa, deitei. A melhor sensação do mundo. ‘Entre o sono e a vigília, eu queria um troço ejetável que me sugasse inteiro, e aí eu esqueceria tudo. Imprimiria tudo isso que saísse de mim e grudaria no telefone público: loira peituda topa tudo duas vezes’.
Um tapa no despertador e ele nunca mais vai tocar nesse timbre tão horrível. Estragando a música. Eu devia estar feliz com a sexta-feira sem chuva, ameaçando um sol. Estava feliz, mas com o vinho. ‘Não estava nem aí pra nada’, lembrei-me. Vesti o de sempre, pasta de dente, chuveiro e vaso, normalmente.
Sentei a mesa para o café cheiroso de todos os dias. Então por um instante, por um breve instante, fiquei mirando o monumento impresso da minha sala. A representação máxima da minha estupidez impressa e registrada na máxima estupidez do século. Levantei com a xícara de café na mão e me aproximei da obra inacabada do homem sem foco. Melhor: o homem fora de foco. Puxei um jornal do meio da pilha, quase um dos últimos.
Voltei a mesa do café, abri na seção Cartas dos Leitores.

Tenho uma intenção. Não importa. Importa a tentativa de me esconder. Me esconder atrás de um poste. Como sou gordo, não consigo. Mas penso que já que o prefeito decidiu contemplar os skatistas com a reforma na calçada da Paulista, poderia agraciar os gordinhos alargando os postes. Eu moro no vigésimo quinto andar do Edifício Rouxinol e vejo, todas as noites, o quanto eles estão contentes com o piso liso da calçada nova.
Ilustríssimo Senhor Prefeito. Ou seria Excelentíssimo? Ou como é mesmo que se abreviam esses pronomes de tratamento? Mas isso também não vem ao caso, porque não me ajuda a me esconder.
Quero me esconder atrás daquele poste da esquina da Haddok Lobo com a Paulista, pra quando aquele meu vizinho passear com o Vincent, todo sábado, e ele resolver fazer xixi, eu vou poder dar aquele escândalo, afinal o cachorro terá mijado na minha perna, porque estarei feliz escondido atrás do poste alargado pelo Excelentíssimo Sr. Prefeito, e então trocaremos telefones. Trocaremos também algumas ofensas, mas isso é pro relacionamento já começar picante e um pouco agressivo. Mas sou gordo.
Na verdade eu sou ator e estou procurando um jeito de me esconder atrás do palco. Não do palco, mas da cena. Só que eu tenho que estar em cena. Então resolvi escrever esta carta para vocês, porque sei que alguma boa alma irá me ajudar a resolver o meu problema. Se eu fosse um escritor, poderia tentar me esconder atrás das palavras. Pareceu, primeiramente, mais fácil do que me esconder atrás de uma cena. Mas cheguei até esta linha e tudo o que consegui foi uma frustrada imaginação de como me esconder atrás de um poste na Paulista.
É claro que se eu disser que tenho no palco apenas a mim mesmo e um objeto qualquer - claro que mais estreito do que eu porque assim conseguiria melhor o efeito de esconderijo em cena, mostrando a todos que, ora vejam só, estou escondido e pretendo flertar com o meu vizinho - eu conseguiria me esconder. Mas eis que me ocorre a idéia de me esconder usando a iluminação da cena. Deixo tudo escuro e estarei escondido. Não, mas isso não terá o efeito de esconderijo pois o público mal saberá que tem alguém ali. No máximo vão achar que a peça terminou e vão bater palmas. Poderia deixar as luzes coloridas preencherem o palco e projetar em mim uma sombra, mas vão achar que é uma porta, um corredor ou outra coisa qualquer sem importância.
Uma palavra para eu me esconder. É tudo o que peço para acompanhar este vinho vagabundo! E se eu fosse um pintor? Abro a janela do meu quarto onde estou no momento escrevendo esta carta, esta última carta: "Prefeito, ajude-me por favor!"


O jornal era de segunda-feira. Levantei da mesa, larguei tudo como estava. Deixei a mochila no sofá, não peguei o casaco e não coloquei os óculos. Abri a porta, pisei no jornal, apertei o botão do elevador. Uma breve ave-maria. Apertei o vigésimo quinto. Bati na única porta da cobertura. Entrei abracei-o e corri para a janela.


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sexta-feira, junho 26, 2009

Uma estória do capuz vermelho

- Não sei! - berra Carlos tossindo o estômago para fora. - Eu não vi nada, não sei de nada, não fiz nada! - tentava convencer com a boca inchada e cortada depois dos socos dos policiais.
Em tom autoritário, o interrogador o pressiona:
– Pare com essa ladainha! Todas as provas estão te acusando, cara! Olha pra mim quando eu falar com você! – estava vermelho de raiva e cuspia cada palavra.
- É, seu merda, pensa que dá uma de espertinho pra cima da gente com esse papo de escritor? - Gargalha grosseira a interrogadora enquanto apóia as mãos na mesa ameaçando bater em Carlos.
Com um olho já meio fechado e o outro acompanhando somente as sombras no recinto, Carlos sentia um formigamento nas articulações e já não tinha forças para continuar negando. Num segundo de devaneio, soltou uma risada cômica e sem esperança. Ria de si mesmo. Imaginou as coxas da policial pressionando suas orelhas. Sentia sua cabeça entre as pernas viris de uma mulher que tinha testosterona entre os dentes.

O casarão de Dna. Eulália ainda estava isolado com as fitas amarela e preta. Um ar sombrio e de tensão rondava o Bairro Alto um mês depois do ocorrido.
A Lurdinha nunca mais tinha passado pelo bar do Zé em direção ao casarão depois que a avó misteriosamente havia morrido. No dia da horrível tragédia elas comeram bolo de fubá e tomaram chá como antigamente.
Até então os médicos e os policiais não tinham chegado à conclusão nenhuma sobre a morte da Dna. Eulália. Lurdinha havia sumido e L. Malva tinha sido visto por uns garotos no Bosque do Bairro Alto. Mas essa, como tantas outras informações sobre aquele fatídico dia não levavam as autoridades a uma conclusão mais precisa.

- Quantos? E agora? Perguntava uma voz calmante e desanimada muito bem escondida na profissão. Carlos acordou com sua própria voz respondendo números desconexos, sobre aquilo que julgava ver à sua frente. Silhuetas dos dedos do médico, sombreados por um holofote que fazia doer sua cabeça.
Com a pouca visão que lhe restava, percebeu uma janela pequena no alto da parede a sua esquerda. Tinha grades, vidros grossos antiruído e um azul inteiro no fundo. Lembrou do dia em que estava na janela do seu quarto e olhando para o céu, fechou os olhos e deixou seus pensamentos serem levados pela brisa do fim de tarde.
Na mesa gelada e dura Carlos desejou estar com os amigos novamente, rindo das piadas do Zé.

A semana que a cidade jamais esqueceu teve dias atipicamente quentes. Outono. A leve brisa era propícia a fortes inspirações. Mas Carlos gostava mesmo era quando soprava o vento chuvoso, que traria vendavais e chuvas rápidas ainda mais intensas. Carlos pegou sua luneta. O céu estava para uma ótima visita. Enquanto isso passava o tempo até a hora do encontro semanal para a sinuca no bar do Zé.

Cacá dormia um sono profundo. Estudar de manhã nunca fora sua preferência.
Lurdinha estava atrasada. Chegou para a segunda aula do dia com enormes olheiras e o cabelo um pouco diferente de como costumava pentear. Usava um topete esquisito e despertou os olhares zombeteiros dos colegas. O Bola e o Zé eram discretos:
- Olha lá a Lurdinha! O que será que aconteceu na noite passada hein?
- Vai ver ela andou lá pelo Bairro das Bocas! – uma voz mais alta fez todos rirem impiedosamente.
- Ou então arrumou um namorado que mora sozinho! – disse o Cabeça, enciumado, se escondendo no fundo da sala.
- Nada! Ela andou foi com o L. Malva.
Um silêncio aterrorizador calou os quarenta e poucos alunos que se divertiam com a aparência da Lurdinha.


L. Malva era o sujeito mais temido por uma parte da população da cidade. Todos os dias ele se dirigia para o Beco dos Gansos e ali ficava horas parado. Mesmo local e horário. Tinha sempre o mesmo chapéu marrom claro, óculos escuros e jeans gasto. Uma perna da calça era maior que a outra. Usava sandálias de tiras de couro. As unhas das mãos e dos pés compridas. Seu comportamento era ameno, para os mais despreocupados.
Embaixo do único viaduto da cidade reinava uma atmosfera úmida e pegajosa e ali L. Malva se camuflava perfeitamente. Nas paredes cresciam musgos e manchas pretas. Na calçada, plantinhas endêmicas era a selva de uma infinidade de seres microscópicos. Um riozinho corria no meio fio a perder de vista.
Mesmo com o calor que fazia na pacata cidade de 30 mil habitantes, L. Malva estava quase sempre coberto. Certa vez algo bem incomum chamou a atenção: um tufo de pelos no cotovelo escapava por um furo na manga da camisa.

Já estava quase na hora. Mas o céu me hipnotizava.
Quase deixei a sinuca para outro dia. Logo o Paulão chegaria, o Marcão, e os demais atrasados para o jogo. Nenhum deles nunca descobriu ao certo o que L. Malva fazia ali. Os mais curiosos arriscavam por vezes permanecer ali no bar até bem tarde da noite a fim de descobrir algo mais sobre ele. Em vão.
Resolvi então deixar a luneta e ir até o bar. Encontrar os amigos era sempre algo que animava. Jogamos durante duas horas, bebemos, rimos das piadas. O Paulão foi embora mais cedo que o costume, dizendo que a mulher estava esperando. Sempre era o último a abandonar o grupo, então se fosse o primeiro a se despedir, já causava a dispersão. Talvez quisessem disfarçar um medo inexplicável da criatura. Talvez mera coincidência.
Ficamos eu, o Zé e o Bola batendo papo no balcão. De vez em quando eu ia até a porta espiar o assunto da noite: L. Malva. De todas as noites. E muito tempo ele permanecia ali, porque não teve vez que algum dos nossos quisesse ficar até mais tarde para ver a que horas, como e por onde L. Malva ia embora. Nada. Ninguém também nunca arriscou uma idéia mais ousada como persistir ali até que a estranha criatura começasse a se afastar e enfim segui-la.
Naquele dia percebi que L. Malva havia ficado ali até mais tarde. Como bom observador e curioso, resolvi estender também a minha estadia na porta do bar.
Para minha surpresa a Lurdinha apareceu, passou pelo bar com a mesma feição misteriosa de sempre, não cumprimentou ninguém, ajeitou o topete debaixo do capuz vermelho e seguiu em direção ao Bairro Alto.
Confesso que aquela paixão adolescente pela Lurdinha às vezes ainda relembra as tardes na escola. Eu ficava lá só para assistir ao ensaio do grupo de teatro do qual ela fazia parte. Em certa medida sofri como um doido com o amor não correspondido, pois a Lu sempre preferiu homens mais fortes, com pernas bem torneadas. Eu estava longe disso.
Nunca me esqueci do episódio em que ela decretou fim vitalício a qualquer relação que tinha comigo: o dia em que ela chegou com o cabelo diferente e a sala toda zombou do novo e estranho visual.
“Mas aonde será que ela está indo a uma hora dessas?”, pensei e num sobressalto resolvi sair do bar e caminhar a certa distância para que ela não pensasse que eu a estava seguindo. Mesmo porque eu não queria seguí-la. Queria caminhar pelas ruas um pouco antes de voltar para casa. E eu estava um pouco mais embriagado que o normal.
Ela ia pelo outro lado da rua. O meu lado era o mais escuro, então seria difícil me notar. Ao passar pelo viaduto onde L. Malva costumava fazer o plantão, tive a impressão de que ele não estivesse mais lá, mas logo voltei ao jogo de tentar adivinhar aonde Lurdinha estaria indo.
Por um instante, tive a sensação de ter visto um raio, algo reluzente vindo de debaixo do viaduto. Naquela escuridão só era possível ver a lua que estava quase cheia e quase no mesmo instante pensei que L. Malva pudesse ter saído dali, num movimento inédito.
Tentei afastar pensamentos que me causavam terror, e levei um susto quando de repente uma enorme coisa peluda, numa revoada rápida e assustada veio na minha direção. Desgovernada esbarrou num galho de árvore torto no meio do caminho. Lurdinha que já estava mais distante nem percebeu.
Um barulho estranho veio de algum lugar no meio das muitas árvores de distância que eu estava dela. Não saberia descrever exatamente esse barulho, pois não era nada que se assemelhasse a um barulho humano, ou a algum animal; nada que estamos acostumados a ouvir. Era como um urro, meio abafado por uma voz cansada, arfante, como se uma criatura rastejante estivesse andando sobre duas pernas, porém com a língua para fora.
Aquele ruído estranho parecia cada vez mais perto. Comecei a sentir tonturas e muito calor. Apoiei a mão em uma árvore próxima e estremeci tapando a boca para não berrar ou vomitar. A árvore tinha uma textura pegajosa, meio quente e úmida. Olhei para o céu e nuvens mesclavam a lua como nos filmes de vampiro. Estremeci dos pés à cabeça. Tive muito medo e quase voltei para trás.
Logo retomei o controle e segui em frente.
Muitos pensamentos sobre a Lurdinha continuavam aparecendo, um atrás do outro, o nosso passado na época da escola, a aparição misteriosa de hoje, a perseguição. Comecei a pensar em mim, no que estava fazendo agora?
De repente senti novamente uma vontade de sair correndo e berrar e urrar como um louco se libertando da loucura. E aquele barulho de animal selvagem meio homem, misturado a embriaguez no meio das árvores estava cada vez mais próximo, me aterrorizando. Cheguei a cair tocando o solo com os joelhos e as palmas das mãos, num completo desespero.
De repente tudo ficou silencioso. O barulho entre as árvores cessou. Por um instante acreditei que aquilo tudo não estava acontecendo que eu estava sonhando esse tempo todo.
Tudo rodava a minha volta e eu estava perdido no meio do caminho do Bairro Alto. Mesmo atordoado, sabia que conhecia muito bem aquele lugar, assim como cada canto escondido da cidade. Com a visão turva, fui tateando o solo enlameado. “Carlos você não tem motivo para descontrole”, uma voz antiga perseguia a minha memória.
Retomei a visão e logo vi que estava em frente ao casarão da Dna. Eulália, avó da Lurdinha.
Entrei pela lateral do casarão porque sabia que ali tinha uma torneira e pretendia lavar um pouco o rosto para me recompor e voltar para casa. Foi quando vi, no meio dos arbustos recém cortados pelo jardineiro, que jamais abandonou Dna. Eulália, a Lurdinha: nua dentro da piscina amando insanamente uma pessoa ou uma coisa, que eu não sabia dizer se estava de roupa, se usava um roupão de pele de animal silvestre, “L. Malva?” pensei, ou uma fantasia bizarra dessas que os jovens usam em festas à fantasia.
Depois dessa visão a Lurdinha desapareceu.

- Já falei, doutor, isso é tudo. Logo depois dessa visão medonha na piscina, tive novamente fortes calores, tonturas ainda piores que as anteriores. Confesso que uma certa confusão tomou conta de mim por alguns instantes, mas depois disso, tudo que me lembro é do interrogatório naquela sala horrível dos policiais.
“E do capuz vermelho da Lurdinha preso em um arbusto no jardim”, pensou consigo.

Carlos não se lembrava de nenhum cortador de gramas.



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terça-feira, maio 05, 2009

ponto escuro longe
fim túnel fundo

quanto mais acelero
mais foge

hoje não sei como
assim que abri
a porta de casa
achei tinta preta
no sobrelábio

estava no mundo
da gaveta

segunda-feira, julho 07, 2008

Trilogia poética

dama da poesia

escrevi um poema
para uma dona
ela usou para
pisar na poça.


xadrez da poesia

escrevi um verso
sobre amor
na soma dos
quadrados dos catetos.


drama da poesia

escrevi um poema
ele ficou preso
dentro do livro.

domingo, julho 06, 2008

las gafas de sol

pelos meus óculos
correm milhares,
multidões de tudo.

à noite bilhares,
sábados à tarde
brilhantes.

domingos brilhantinas.

atrás dos meus óculos
correm meus olhos
atrás de você.

sábado, julho 05, 2008

a rua me esconde

mentir encher
a cara
cair na rua
sofrer babar
berrar doer
fazer
chorar
rastejar escabelar

acordo tomo
um café
cigarro saindo

corro corro

a rua me esconde
parei de escrever

não sei que mundo
objetivo reto
retângulo
lados iguais
certo casado
fiel cachorro
engajado

osso entalado
esse em que me meti
vivia em minha cama

acordava com o sol
irrefletido na vidraça
empoeirada
e a fumaça

névoa de café
e cinzas da noite

recordo

claro vaso
imperfeitas curvas
sorriso trêmulo
esconderijo

goteja lentamente
a vontade deixada
morta,

regalos embotados
num futuro inexistente

ladeira

um dia me fez
subir descer
correr
escorrer
ladeira abaixo.

procurava uma gota
qualquer tua
que entrasse
em meus poros.

um quadro

de cor vermelha enche tudo com seu doce odor. de pinceladas curvas perfeitas pinta meus olhos. enxergo gosto intenso, um laranja redondo, semi-círculo exato. exala suor embaça minha boca.
Durmo sono profundo
após páginas
exageradamente
escritas subescritas
poesias retalhos
retratos.
Dizem-me as
páginas,
imaginas centelhas
centauros
em cada
marca puxada
pelas orelhas.
Mil ovelhas
bestas mulas
centenas de cabeças.
Pede a poesia erótica
desfaça-me o desejo
de morder tua
artéria coagulando
idéias.
Esfacela minha boca
já um pouco
rouca
da miséria
louca, estéril.
Reviras
febres tormentas,
então voa
some morre
volta e meia
viras palavra.

A fome ao alcance da mão

Quisera me desgrudar
do olhar
daquele desenho
perfeito pregado
no enlace da mão.
Quisera desfixar
a atenção
entorpecendo
minhas pupilas
no canto
do olhar.
O corpo fixo
duro
burro sem cura
nem culpa,
asfixiado
quisera a mão
suspirando um toque, e
despistaria o luxo.
Um sono qualquer
invade e desvia
olhar adentro.
O corpo submisso
rende-se:
cai rente à mão
faminta feito cão.

quarta-feira, maio 21, 2008

Outra mão

Cabeça no mato

olhos pra baixo

sol subindo

sumindo

balão.

Fala de lua

estrela cometa

comenta erupções.

Encontra mão

segurando

corrimão

suspenso

sobe os cílios:

é sua

a outra mão.